A Luz e a Música de Clara Sverner, por Angela de Almeida

No princípio eram as Trevas. Até que, num repente, fez-se a Música. E então, só então, se fez a Luz. Assim pode ser resumida a gênese de uma das mais inspiradas pianistas que o país até hoje produziu. A lembrança daquela noite de verão no início dos anos 40, quando, aos quatro anos e meio de idade, venceu o medo da escuridão e percorreu, solitária, sombrios corredores em busca do som que provinha do piano do hotel, onde passava férias com a família na estação de águas de São Lourenço, Minas Gerais, permanece tão vívida na memória de Clara Sverner quanto a luminosidade implícita em seu prenome. Aquele instante de revelação, em que, hipnotizada aos pés da pianista, intuiu que Luz e Música eram sinônimos para ela, selou para sempre o seu destino.
Poucos meses mais tarde, o pai cedia, generoso, às suas súplicas. E, em seu quinto aniversário, em lugar de uma boneca, a pequena Clara ganhava de presente seu primeiro piano. Menina prodígio, aos seis anos de idade, ela interpretava peças de Schumann em auditórios de rádio, durante programas transmitidos ao vivo para a capital paulista; aos onze, vencia o Concurso Bach com uma complexa Suíte Inglesa do compositor; e aos doze fazia sua estréia com orquestra sob a regência de Armando Belardi.

Maestro Eleazar de Carvalho, diretor e regente de orquestras no Brasil e no exterior.Foi premiada, com apenas dezesseis anos, no Concurso Internacional Wilhelm Backhaus; aos dezessete, surpreendia o público do Teatro de Arena com as notas cromáticas e atonais de Anton Webern e Alban Berg; e, aos dezoito, atuava como solista convidada da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) na primeira audição em solo nacional do Concerto para Piano e Orquestra de Katchaturian, sob a regência do maestro Eleazar de Carvalho. Aluna de José Kliass – mestre de toda uma geração de pianistas em São Paulo – e, mais tarde, do legendário Koellreutter, que lhe apresentou, de um lado os virginalistas ingleses do século XVI e, de outro, os dodecafônicos da Escola de Viena, incentivando assim seu pendor para “arqueologia” e sua índole transgressora, Clara Sverner aperfeiçoou seus estudos em centros musicais avançados.

No Conservatório de Genebra, Suíça, de onde saiu, em 1957, diplomada com a Medalha de Ouro, teve como mestre Louis Hildebrand; e no Mannes College of Music, de Nova Iorque, Leonard Shure, discípulo de Artur Schnabel, com quem, ao longo de um ano de estudo sobre uma única sonata de Beethoven, aprendeu o valor inestimável do detalhe. Em 1958, quando Leonard Shure a escolheu para figurar, junto com outros três de seus melhores alunos, entre os concertistas da nona edição do Festival de Aspen, Estados Unidos, Clara Sverner não hesitou em declinar do convite, que poderia alavancar sua carreira internacional.

Rio de Janeiro
Ela resolvera casar e logo se mudou para o Rio de Janeiro. Quatorze anos se passariam até que ela fizesse, em grande estilo, sua estréia fora do Brasil: em maio de 1973, no Mann Auditorium, de Tel Aviv, acompanhada da Filarmônica de Israel, já nessa época uma das melhores orquestras do mundo. Em recitais-solo ou em duo – com o violoncelista Takeichiro Hirai, Tóquio, 1986; com a soprano alemã Margarita Schack, Paris, 1987; e com o saxofonista Paulo Moura, Barcelona, 1991 – , a maestria de seu piano ecoaria ainda, entre as décadas de 70 e 90, em Londres, Hamburgo, Frankfurt, Paris, Nova Iorque, Washington, Barcelona e diversas cidades do Japão.

Em outubro de 84, quando se apresentou na prestigiosa 92nd Street Y, o crítico do New York Times, John Rockwell, célebre pela severidade e aspereza de suas apreciações, elogiava a “sua técnica considerável, para não dizer poderosa, e sua sensibilidade para o fluxo e refluxo da música inspirada pela dança” de Ravel e Scriabin, naquele que considerou “o momento culminante” do recital. Surgia ali mais uma oportunidade de investir na conquista do território musical norte-americano.

Acontece que, naquelas aulas memoráveis na Escola Livre de Música durante os primeiros anos da década de 50, a jovem Clara havia aprendido com Hans Joachin Koellreutter uma lição da qual jamais se esqueceria: a de que a caminhada de um verdadeiro artista precisava de algo mais que o brilho da fama. Não foi por acaso que, a propósito de uma apresentação da ex-aluna, ainda em seus verdes anos, o mestre e compositor alemão profetizara em resenha publicada no Diário de São Paulo: “Clara Sverner é uma pianista da qual se pode esperar mais do que a carreira de uma simples virtuose. Creio que ela esteja predestinada a cumprir entre nós uma missão em prol da música, no sentido verdadeiro”. Ela continuou, pois, a cumprir sua missão, iniciada há duas décadas, desenvolvendo uma trajetória autônoma que, apartada de tentações carreiristas, lhe permitisse deitar um olhar liberto sobre a produção musical pregressa ou contemporânea, especialmente a gerada em solo brasileiro.

Sem deixar de lado, no embate com a platéia ou no recolhimento das gravações, a paixão por compositores como Debussy, Ravel, Webern, Bartok ou Satie, suas mãos inquietas já haviam perscrutado peças de Cláudio Santoro, Heitor Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Marlos Nobre, Osvaldo Lacerda, Ernesto Nazareth; haviam cuidado de livrar do esquecimento a obra densa, singular e praticamente desconhecida de Glauco Velasquez (1884-1914), a quem tributaria três álbuns, um dos quais gravado na Alemanha; de trazer à luz a vasta e deleitosa produção pianística de Chiquinha Gonzaga (1847-1935), em dois long playings reveladores do limiar dos anos 80; e haviam tratado de honrar, também, o centenário de vida e os 40 anos da morte de outro grande pianeiro, Eduardo Souto (1882-1942) – o brilhante melodista de O Despertar da Montanha, também envolto nas brumas da falta de memória nacional.
E se já vinha flertando com a linha fronteiriça entre a música popular e a de concerto, ao dedicar, por exemplo, um lado inteiro de seu LP Rio de Janeiro, de 1978, à música de salão de autores fluminenses de meados do século XIX, de forte influência européia, mas com elementos extraídos de gêneros populares, o mergulho na obra desbravadora e miscigenada de Chiquinha Gonzaga parece ter atiçado ainda mais esse fascínio.
E quanto mais Clara cumpria o papel pioneiro de levar afinal para as salas de concerto a obra da maestrina carioca para o piano – em que valsas, polcas e tangos da música de salão européia convivem em saudável promiscuidade com lundus e cateretês trazidos da África pelos cativos, ou com a sensualidade dos maxixes dos bailes populares d’antanho, em híbridos que ajudaram a fundar as bases de uma sintaxe musical genuinamente brasileira – , tanto mais a obra de Chiquinha a conduzia a uma aproximação cada vez maior com o universo musical popular do país. No ano seguinte, Clara Sverner fez um duo com um dos maiores saxofonistas do país, Paulo Moura, criando um duo antológico.

Paulo Moura, saxofonista e Clara Sverner, pianistaA dupla fez inumeráveis recitais pelo país e gravou quatro discos em duo, ganhando prêmios, a crítica e o público, introduzindo na época uma surpreendente mistura do clássico ao popular e, certamente, influenciando toda uma geração de músicos. Também, com João Carlos Assis Brasil, cria um duo de piano muito ativo em gravações e palcos, passeando de Joplin a Ravel. A intensa atividade de Clara Sverner nos palcos brasileiros nos anos 80 incluiu, além de incontáveis concertos com Paulo Moura e João Carlos Assis Brasil nos quatro cantos do país, um sem-número de recitais-solo aqui e lá fora, envolvendo uma variedade surpreendente de repertório; e, se não bastasse, apresentações como solista das sinfônicas de Porto Alegre (OSPA) e do Estado de São Paulo (OSESP), que deram seguimento a sua estreita colaboração com o maestro Eleazar de Carvalho, então diretor artístico e regente-titular dos dois conjuntos sinfônicos. Sem jamais perder de vista a coerência, sua excepcional versatilidade e sensibilidade como intérprete sempre foi (e continua sendo) amplamente reconhecida pela crítica especializada.

Só para citar um exemplo, os três álbuns gravados pela pianista em 1984 figuraram em todas as listas dos melhores do ano em nada menos que três categorias: Música Clássica (Clara Sverner interpreta Glauco Velásquez, Polygram), Jazz (Joplin Satie, em duo com João Carlos Assis Brasil, EMI – Odeon) e Música Popular (Encontro, ao lado de Paulo Moura, Turíbio Santos e Olívia Byington, Kuarup Discos).

Não satisfeita, e preocupada, na verdade, em se aprimorar ainda mais como intérprete, Clara Sverner encontrou tempo ainda para voltar a estudar com Koellreutter – desta vez, Composição –. Os anos 90 a encontrariam empreendendo um delicioso mergulho na obra de Heitor Villa-Lobos, no CD Alma Brasileira, que, exclusivamente dedicado ao compositor, devotava especial atenção à parcela de sua produção inspirados em gêneros populares e temas extraídos do folclore; a surpreenderiam, também, revisitando Glauco Velasquez, em CD encomendado pelo selo alemão Marco Polo, e Chiquinha Gonzaga, em CD que marcaria a inauguração de seu próprio selo (Ergo); e a levariam de volta aos Estados Unidos e ao Japão, desta vez em turnês, que, como não podia deixar de ser, incluíam no programa peças de Chiquinha, Nazareth, Velasquez, Villa-Lobos. E eis que, depois de se concentrar por anos a fio na produção musical dos séculos XIX e XX, no milênio que começava, a têmpera arrojada da pianista a lançaria em um projeto desafiador: a gravação do ciclo integral das sonatas para piano de Mozart.

A paixão pela obra do compositor austríaco a acompanhou desde a juventude, quando escolheu o Concerto Jeunehomme Nº 9 como tema de sua prova de formatura no Conservatório de Genebra, da qual saiu com a nota máxima e uma medalha de ouro. Mas, para chegar a uma interpretação verdadeiramente “autoral”, capaz de desvendar os enigmas propostos em cada uma das 18 sonatas escritas entre o outono de 1774 e o verão de 1789 por um dos maiores gênios da História da Música, Clara Sverner soube ter, antes de tudo, a sabedoria de esperar por sua maturidade artística, e, depois, o desvelo de empenhar quatro anos de sua vida ao estudo do autor e ao trabalho de lapidação das peças que se propôs a reler.

Em 2003, eram lançados, os dois primeiros discos da série de cinco que pretende colocar no mercado em sua totalidade. . E, depois de ver o primeiro CD da série indicado para edição 2004 do Prêmio Tim, a interprete foi agraciada com Prêmio Tim 2005 pelo segundo CD. Dona de uma discografia que conta hoje 24 títulos, do alto de seus mais de sessenta anos de trajetória artística – a contar, é claro, das primeiras aparições em rádio aos seis anos de idade –, é com inefável brilho nos olhos e largo sorriso que esta grande dama do piano fala do que ainda pretende realizar: gravar Chopin, Debussy e Ravel, compositores sobre os quais guarda a certeza de que tem algo de novo a dizer; voltar a dedicar-se à composição e à produção poética, interrompida há anos, e por fim, mas não por último, continuar a dar recitais por esse país afora, entre outros motivos, para ainda poder ser surpreendida, como aconteceu recentemente, pelos aplausos entusiásticos de milhares de pessoas das camadas mais carentes da população, que, em pleno Dia da Independência, se aglomeravam a céu aberto na zona norte de Natal (RN) para assistir a um grupo de pagode muito famoso no Nordeste: ele não compareceu ao evento e o público acabou se deixando envolver pela arte da pianista, que transitava entre a leveza de uma peça de Chiquinha Gonzaga e os acordes complexos de um scherzo de Chopin.
Como se vê, para o supremo deleite de todos nós, a Luz e a Música de Clara Sverner não deixarão de reluzir tão cedo…