Veja – O piano bem temperado, por Lucila Soares

Depois de mergulhar no século XIX brasileiro e alçar voos vanguardistas, Clara Sverner grava a íntegra das sonatas de Mozart

Clara Sverner costuma dizer que se sente abandonada quando não vê um piano por perto. Tem dois na ampla sala de seu apartamento de frente para o mar de Copacabana, onde vive há mais de trinta anos, outro no sítio de Secretário, na região serrana do Rio, onde passa a maioria dos fins de semana. E, quando chega a qualquer lugar, flagra-se procurando um piano, mesmo sabendo que não há motivo para que exista algum ali. Tem sido assim desde o início dos anos 40, quando ela ouviu pela primeira vez o som do instrumento, no hotel onde passava as férias com seus pais. Tinha 4 anos de idade, e em seu aniversário seguinte pediu e ganhou seu primeiro piano. A história que vem a seguir se parece com a de muitos músicos talentosos. Aos 6 anos, a pequena Clara encantava plateias em programas de rádio dedicados à música clássica em São Paulo, onde nasceu e foi criada; aos 11, venceu seu primeiro concurso; aos 18, era solista convidada da Orquestra Sinfônica Brasileira, regida pelo maestro Elea-zar de Carvalho. Mas terminou aí o que parecia previsível em sua carreira. Muito cedo ela enveredou por repertórios difíceis, de vanguarda, num caminho estimulado por seu grande mestre, o compositor alemão Hans-Joachim Koellreutter, in-trodutor da música dodecafônica no Brasil. No mesmo movimento de buscar o desconhecido, ou pouco conhecido, interessou-se pelos compositores brasileiros do século XIX, entre eles a hoje conhecidíssima Chiquinha Gonzaga. E, ao mesmo tempo em que aprimorou a técnica, acostumou-se ao estudo obsessivo de cada partitura, num trabalho que define como arqueológico.

Foi com determinação de pesquisadora que Clara dedicou os últimos seis anos às dezoito sonatas que Wolfgang Amadeus Mozart compôs entre 1774 e 1789. São cinco CDs, reunidos em uma caixa que acaba de ser lançada. Prestes a completar 73 anos, ela diz que só a essa altura da carreira se sentiu pronta para gravar Mozart. Releu e estudou em detalhe cada uma das partituras, mas acabou encontrando numa carta do compositor o caminho que procurava. Nela, Mozart elogia os novos recursos sonoros oferecidos pelos pianofortes. “Eu me senti mais livre para explorar os recursos do piano moderno, porque ele ansiava por um pianoforte melhor”, diz. Ao final, considera ter encontrado o que classifica como a “ourivesaria lapidada”, naquela fase da carreira em que os bons pianistas conseguem o que a portuguesa Maria João Pires define como “aperceber-se da alma do compositor e mais tarde contá-la aos outros, como contaria a história de alguém”.

A gravação das sonatas de Mozart é um momento especial na carreira de Clara. Ela diz com todas as letras que nunca teve vontade de seguir a trilha dos grandes concertistas, que “tocam basicamente o mesmo repertório e vivem enfiados em aviões e hotéis”. Fez escolhas pessoais que possivelmente a teriam impedido de mudar de ideia – como trocar Nova York pelo Rio de Janeiro nos anos 50, para se casar e criar seus filhos. Pagou por isso o preço de só gravar seu primeiro disco em 1970. No meio-tempo, trocou os palcos pelas bibliotecas. Recuperou a obra de Glauco Velásquez (1884-1914), compositor de vida curta e produção intensa, e Eduardo Souto (1882-1942), resgatou a música de salão de autores fluminenses de meados do século XIX. E descobriu Chiquinha Gonzaga (1847-1935). A compositora de Ô Abre Alas abriu para Clara o caminho do grande público. A pianista inaugurou uma longa parceria com o maestro Paulo Moura, com apresentações memoráveis e uma discografia saborosa, que tem como destaque Encontro, em que se reuniram, além de Clara e Moura, o violonista Turibio Santos e a cantora Olivia Byington. Agora, Mozart fecha o circuito: um compositor clássico popularíssimo.

Fecha? Em se tratando de Clara, esse verbo é de pouca utilidade. No ano passado, ela gravou participação especial no último CD do ex-Los Hermanos Marcelo Camelo e, neste ano, embarcou com um de seus filhos, o designer Muti Randolph, num projeto multimídia. Para 2010, planeja o lançamento de um CD com composições de Frédéric Chopin, gravado na Inglaterra, e a produção de outro, dedicado a Maurice Ravel. Tudo para continuar tendo o piano por perto.